O jogador de futebol enquanto trabalhador, símbolo e mercadoria: três estudos

Rahul Kumar

(Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Instituto de História Contemporânea – NOVA FCSH)


ABSTRACT

Reviewing three recently published works on the history of football in Portugal, centered on the figure of the football player, as a worker, symbol and commodity, this text discusses the dominant theoretical and methodological models in sport studies – scales, periodizations, concepts and empirical materials. Focused on a semi-peripheral context of the international football system, the three books allow us to question the structural transformations of contemporary football, to reconsider the different modalities of the relationship between football and politics, and to broaden the research agenda of a historical sociology of football. Three key issues are highlighted in this text: the analytical relevance of the peripheries of the global football field, the importance of crossing conventional geographical periods and scales in sports history and the need to broaden and multiply the sources and materials used in research.

Keywords:  Portugal, football – professionalization – politics – methodology


1.  Introdução

O desenvolvimento de boa parte da investigação em ciências sociais sobre os fenómenos desportivos tem estado centrada, como apontam Tomlinson e Young, no espaço nacional 1 . Este tem constituído o quadro de referência analítico dominante na historiografia europeia, sendo raros os trabalhos com um foco relacional ou comparativo. O nacionalismo metodológico moldou, assim, – seja por via da assunção do estado-nação como a unidade natural de análise das ciências sociais seja por via da explicação endógena dos processos de desenvolvimento e mudança social – o nosso entendimento dos fenómenos desportivos 2 . A dimensão transnacional destes processos surge nas narrativas historiográficas por via da identificação da sociogénese das práticas desportivas, da sua difusão, associada aos processos de conquista imperial, dominação colonial ou expansão do comércio internacional, normalmente no sentido centro-periferia. Mas ultrapassado o período de contacto inicial, a narrativa historiográfica reverte novamente para o interior do estado-nação. Um primeiro corte com este modo de entender a mudança social verificou-se com ideia de uma ruptura epocal assinalada pelo conceito de globalização. O trabalho de Arjun Appadurai sobre a transformação do críquete, associado aos códigos morais do colonizador num espectáculo popular na Índia pós-colonial 3 ,   ou as análises de autores como Robertson e Giulianotti 4 , representam modelos paradigmáticos das formas através das quais as teorias da globalização procuram olhar para a expansão das práticas desportivas e do contributo que os estudos sobre desporto podem dar para o desenvolvimento da teoria social.

Três trabalhos publicados em 2017, centrados no caso português – Following the ball: the migration of African soccer players across the portuguese colonial empire, 1949-75, de Todd Cleveland, Deixemo-nos Sonhar. Caso Saltillo: Portugal e o México 86 , de Pedro Adão e Silva e João Tomaz, e A Orgia do Poder: a histórica nunca contada de Jorge Mendes , de Pippo Russo 5  –permitem analisar a configuração de um campo futebolístico transnacional. Perseguindo um horizonte de trabalho que ultrapassa as dimensões territoriais do estado moderno, sem, contudo, cair em muitos dos equívocos associados ao conceito de globalização 6 , estes trabalhos ajudam a repensar os modelos teórico-metodológicos dominantes nos estudos sobre desporto – escalas, periodizações, conceitos, definição de terrenos de pesquisa empírica, técnicas de recolha de dados e fontes. Ao mesmo tempo, estes livros desafiam as tendências de segmentação disciplinar a partir das quais se organiza o trabalho académico – nomeadamente no que diz respeito à separação entre disciplinas académicas, mas também entre as lógicas de argumentação e produção de conhecimento nas ciências sociais face a outros campos de produção do saber, em especial na sua relação com o jornalismo e o mercado editorial. Lidos em conjunto, os três livros, em cujo núcleo temático central podemos identificar uma história do jogador de futebol (enquanto trabalhador, símbolo e mercadoria), obrigam também a reconsiderar o lugar do atleta desportivo na história do jogo. No quadro da historiografia do desporto europeia, o jogador de futebol profissional tem constituído, por diversas razões, uma caixa negra difícil de abrir. Ainda que ancorados em diferentes problemas de trabalho e objectos de investigação, os três livros mostram, finalmente, como olhar para as periferias do sistema futebolístico global nos permite compreender melhor as dinâmicas de transformação e reconfiguração de um campo futebolístico transnacional. As mutações institucionais nas margens do campo futebolístico ajudam a iluminar aspectos da economia política do jogo que vistas do centro permanecem na sombra.

2.  De África para a Europa. Das colónias para a metrópole. A constituição de um mercado futebolístico imperial

Em Following the ball: the migration of African soccer players across the portuguese colonial empire, 1949-75,  Todd Cleveland, analisa as experiências e as trajectórias profissionais dos atletas africanos, negros, que migraram dos territórios e clubes coloniais portugueses para o espaço futebolístico metropolitano entre 1949 e 1975. Percorrendo um período que vai do pós-guerra até ao final de uma ditadura que durou praticamente meio século, o livro descreve as carreiras destes jogadores e como navegaram no ambiente político, social e cultural dessa época (que inclui uma longa guerra colonial entre 1961 e 1974 e uma revolução social entre 1974-75). Ao reconstruir as trajectórias destes migrantes desportivos, Cleveland junta no mesmo quadro analítico a formação de um espaço multicontinental de circulação de atletas, imagens e práticas desportivas (assente em instituições, ideologias e agentes específicos) com uma descrição minuciosa dos modos como estes homens imaginaram futuros, organizavam quotidianos e formavam ligações nos diversos mundos sociais que atravessaram. O jogador de futebol negro não surge aqui apenas como um migrante cujo trajecto importa descrever, como um herói desportivo cujo simbolismo importa analisar, ou como um actor político cujas militâncias importa estudar. Ainda que essas essas dimensões sejam fundamentais para situar o jogador de futebol negro no Portugal autoritário da segunda metade do século XX e contribuam para a complexidade destas figuras, o ângulo de abordagem seguido no livro, o da história do trabalho assente prioritariamente em fontes orais, permite desenvolver um olhar menos fragmentado e menos exótico sobre a vida e o quotidiano do jogador de futebol, reconstituindo esse mesmo quotidiano a partir das suas próprias subjectividades e sensibilidades.

A esta opção não será estranho o percurso académico do autor do livro. Antes de Following the Ball, Todd Cleveland investigou sobretudo a história da exploração mineira e do trabalho nas minas em África. É, portanto, no quadro mais geral de uma história de África e de uma história do colonialismo, onde o tema do trabalho é central, que devemos entender o argumento de Cleveland 7 .   O livro encontra-se organizado em cinco capítulos, com uma lógica simultaneamente cronológica e temática. No primeiro, intitulado “Foundations. The Introduction and Consumption of Soccer in Lusophone Africa”, o autor descreve a constituição de um campo de práticas desportivas no contexto colonial português, prestando especial atenção à formação de uma estrutura de práticas segmentada e racializada e identificando as suas principais instituições. Entre estas, destacam-se o papel que os meios de comunicação social, a rádio e a imprensa, e as digressões de verão das principais equipas metropolitanas por territórios africanos desempenharam na divulgação do jogo.

Depois de percorrer os contextos onde surgiram muitos destes jogadores negros, o segundo capítulo, sob o título “Engaging with the game. African practioners in the colonies”, dá continuidade à análise da recepção do futebol nos subúrbios e relata a forma como o jogo foi apropriado por diferentes sectores da sociedade colonial. Neste capítulo, no qual o futebol é visto como uma prática que facilitava o contacto social e a integração no espaço urbano, surgem em primeiro plano a constituição de uma rede de competições, os jogos de rua organizados por clubes informais, e a construção de uma cultura desportiva local, que misturava referentes vários (metropolitanos, mas também internacionais) que colaboravam para a formação de uma abordagem singular ao jogo. É nesta secção do texto que começamos a compreender os processos e as estruturas que facilitavam a transição dos jogadores mais talentosos do futebol do subúrbio para o futebol da cidade colonial.

No terceiro capítulo, “Following the Ball, Realizing a Goal From the Colonies to the Metropole”, começa a traçar-se um retrato mais fino do perfil que conduzia a uma integração bem sucedida no futebol de competição oficial. O autor mostra como eram os jogadores mestiços ou assimilados aqueles que estavam melhor equipados do ponto de vista cultural e disposicional para encetar carreiras de sucesso nos principais clubes coloniais, que a partir do início da década de 1950 passaram a aceitar a inscrição de jogadores negros. A inserção no futebol da “cidade de cimento” abria possibilidades não apenas do ponto de vista desportivo, com uma potencial progressão para os clubes metropolitanos, como representava também uma hipótese de acesso a outros mercados laborais no contexto colonial, menos subalternos e um pouco melhor remunerados.

Depois de observamos a formação do campo futebolístico colonial, o quarto capítulo, “Successes, Setbacks, and Strategies. Football and Life in the Metropole”, acompanha as transferências dos melhores jogadores dos clubes coloniais para os principais clubes metropolitanos. Um dos aspectos mais interessantes deste capítulo, a par da descrição da integração destes atletas no quotidiano do Portugal autoritário, é a análise das relações laborais assimétricas que se estabeleciam entre clubes e jogadores e as perspectivas profissionais que moldavam as escolhas feitas por estes atletas. Num contexto em que uma carreira no mundo do futebol estava longe de constituir uma garantia para um futuro economicamente estável, muitos deles apostaram em processos de migração secundária, através, por exemplo, da procura de transferências para clubes que lhes garantissem um emprego paralelo ou posterior à carreira desportiva ou a possibilidade de continuar as suas trajectórias académicas,

Finalmente, no capítulo “Calculated Conciliation: Apoliticism in a Politically Charged Context” são discutidas as duas questões que habitualmente se colocam em relação ao jogador negro no Portugal do Estado Novo: a questão do racismo e a lógica das tomadas de posição política destes agentes. Apesar de situadas num quadro de desenvolvimento de lutas anticoloniais e antifascistas em Portugal e nas colónias, as duas questões não deixam de ecoar até aos nossos dias e não remetem exclusivamente, como é óbvio, para o lugar do jogador negro nos regimes autoritários. O foco temático de Cleveland, ou seja, o tema do trabalho e das migrações, e o foco metodológico do trabalho, assente na história oral, contribuem para ampliar a nossa leitura destas duas questões. Se até aqui o lugar do negro no futebol português tem sido analisado sobretudo a partir de metodologias, problemas e fontes próximas dos estudos culturais, ou seja, das representações e dos discursos formados sobre estes actores no espaço público e no quadro de diferentes instituições de mediação cultural 8 , em Following the Ball  é a voz destes atletas que se encontra em primeiro plano.

Os resultados da investigação, sobretudo as 15 entrevistas com atletas (entre os quais encontramos Eusébio, Mário Coluna, Hilário Conceição e Mário Wilson a par de nomes menos conhecidos como Nuro Americano, Augusto Matine ou António Brassard, entre outros) cruzadas com outras fontes – imprensa, arquivo, legislação, bibliografia secundária – contribuem, assim, para alargar as interpretações sobre o problema do racismo na sociedade portuguesa, autoritária e colonial. Mas permitem também questionar de novas formas a relação entre futebol e política e o papel do jogador enquanto agente de um espaço público no qual o desporto ocupa um lugar importante. É aqui que reside o grande contributo de Cleveland para a historiografia do desporto: olhar para estas transformações do campo desportivo português – a passagem de um profissionalismo encapotado (1949) para um profissionalismo limitado (que se manteve em vigor até à segunda metade da década de 1970), os sucessos internacionais das equipas portuguesas nos anos 1960 ou o fim do Estado Novo – do ponto de vista do jogador enquanto trabalhador, interpretando essa experiência no quadro mais geral da história do campo futebolístico português. A configuração desse campo depende, como aliás se torna claro ao longo do livro, não apenas de dinâmicas internas ao espaço nacional ou da integração do espaço colonial, mas da inscrição complexa e diferenciada das diversas instituições do futebol português em redes transnacionais desigualmente consolidadas.

3.  Do Portugal colonial ao sonho de um Portugal Europeu. Da raça à classe. As reconfigurações da identidade nacional vistas de um campo de futebol

Entre os factores decisivos que ajudam a compreender as mudanças observadas no campo futebolístico português dos anos 1950 deve contar-se a institucionalização das competições europeias de clubes e de selecções e a massificação do consumo do espectáculo desportivo na Europa do pós-guerra. É contra o pano de fundo das novas condições transnacionais de produção do espectáculo desportivo, que incluíam também o acesso a novas redes de recrutamento de treinadores para as principais equipas portuguesas (muitos deles provenientes da América do Sul), bem como de factores de natureza política relacionados com a necessidade de legitimação internacional do colonialismo português, que se desenrola a narrativa de Following the Ball . Os debates e os problemas suscitados pela participação da selecção nacional portuguesa no Mundial do México de 1986, o tema de Deixemo-nos Sonhar. Caso Saltillo: Portugal e o México 86  de Pedro Adão e Silva e João Tomaz, revelam já uma outra configuração do campo. Para que se compreenda um pouco melhor o alcance da obra é necessário contextualizar as expectativas que a equipa nacional portuguesa encarnava em 1986.

Em 1986, Portugal participou pela segunda vez num campeonato mundial de futebol. Esta foi apenas a sua quarta participação num grande torneio internacional. A primeira fora em 1928, nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, torneio no qual Portugal alcançou um surpreendente quarto lugar. Trata-se, porém, de uma história apresentada de passagem nos almanaques desportivos e largamente ausente do imaginário das culturas adeptas nacionais. O terceiro lugar conquistado no campeonato Mundial de Futebol de 1966, o resultado da segunda participação da selecção nacional num grande torneio, continua, pelo contrário, a ser objecto de análise e de discussão. Depois de 1966 passar-se-iam quase vinte anos até que se voltasse a observar um novo ciclo de sucesso internacional das equipas portuguesas. Em 1984 a selecção nacional atingiu as meias-finais do Campeonato da Europa, sendo apenas eliminada no prolongamento pela equipa da casa, a França. Tal como sucedeu nos anos 1960, não se tratou de um resultado isolado de equipas portuguesas no plano internacional.

Perante o improvável apuramento para o Mundial do México, dadas as circunstâncias em que foi conquistado (um golo de fora da área, no último jogo do apuramento, em Estugarda, contra a Alemanha), as expectativas obviamente elevaram-se. Aquele golo inesperado simbolizou para muitos sectores da sociedade portuguesa a esperança de um novo lugar do país no plano europeu. É precisamente em torno desse momento, pensado enquanto momento de transição política e cultural, que Pedro Adão e Silva e João Tomaz constroem o seu argumento sobre os eventos que marcaram a participação portuguesa no Mundial de 1986. Todavia, ao contrário do que sucedera no passado, os resultados no torneio foram considerados um desastre. Depois de uma vitória perante a selecção inglesa, a equipa portuguesa foi derrotada pela Polónia e por Marrocos, não tendo, por isso, conseguido ultrapassar a fase de grupos. A verdadeira história da participação portuguesa nesse mundial não aconteceu, porém, dentro do relvado. Uma insurreição de jogadores em conflito aberto com a Federação tornou-se o enquadramento principal dessa participação.

O objectivo do livro é, por conseguinte, revisitar a história do que ficou conhecido como “caso Saltillo”, nome da localidade onde a equipa estagiou no México. É no diálogo entre uma certa memória socialmente construída daqueles dias mexicanos, uma imagem mitificada e equivocada, e a reconstituição do que ali se passou a partir do ponto de vista dos principais intervenientes no processo, os jogadores, que o argumento se desenvolve. Segundo essa memória socialmente construída com base numa hierarquia de credibilidade específica e num contexto político particular, o fracasso da selecção no México teria resultado de uma combinação de falta de profissionalismo (Saltillo teria sido uma longa festa polvilhada com sexo, álcool e drogas) e de falta de patriotismo dos jogadores (estariam mais interessados nos seus ganhos económicos imediatos do que em representar a pátria) conjugada com uma instrumentalização política (o Partido Comunista Português teria incitado a greve aos treinos para daí extrair vantagens políticas).

A tese de Pedro Adão e Silva e João Tomaz é que as imagens de hedonismo e politização do protesto dos jogadores foram claramente exacerbadas. Pelo contrário, os autores olham para o protesto dos jogadores no México como resultado das falhas organizativas do futebol português e uma expressão de maior consciência laboral dos atletas. Num momento em que as estruturas do futebol global se transformavam rapidamente – fruto da entrada da publicidade e da televisão no campo futebolístico global, de uma nova posição social e económica do jogador de futebol, da consolidação das grandes estruturas de regulação internacional do jogo enquanto poderosas instituições políticas e económicas – as instituições do futebol português e especialmente os seus dirigentes permaneciam agarrados a velhas formas organizativas e velhos modelos regulação das relações entre dirigentes, jogadores e treinadores, assentes numa cultura de improviso, amadorismo e autoritarismo. Saltillo representou então para os autores de Deixem-nos sonhar , esse momento a partir do qual os restos de um passado corporativo e de uma breve experiência socialista começaram a ser superados por uma nova forma de governo da modalidade. O protesto dos jogadores, deve sublinhar-se, terá sido o elemento que espoletou esse processo de racionalização e modernização do futebol português: “Saltillo pode ser descrito como o 25 de Abril do futebol português. Um processo de mudança que, à imagem da transição política, ocorreu tardiamente e, por isso mesmo, foi repleto de contradições e reivindicações incontidas. Tal como depois de 1974, na política e no país, nada foi como dantes; também o futebol português mudaria radicalmente depois da passagem pelo México 86” 9 .

O livro é constituído por três grandes partes, cada uma delas divididas em pequenos capítulos nos quais, a partir de vinhetas históricas, excertos de entrevistas e análise de imprensa, é reconstruido não apenas o “caso Saltillo” mas também um certo do quotidiano do futebol português de meados dos anos de 1980. A primeira parte, sob o título “Um caos anunciado”, escava os antecedentes de Saltillo e as relações de força que se polarizavam em torno da selecção nacional de futebol portuguesa entre 1984 e 1986: o conflito entre clubes, que influenciava as convocatórias para a selecção, as relações entre jogadores durante os estágios (jogadores de Benfica e Porto não se sentavam à mesma mesa durante as refeições) e se estendia inclusivamente à constituição da equipa técnica (no campeonato europeu de 1984 em França, a selecção foi dirigida por uma comissão técnica de quatro elementos, representado os principais clubes portugueses), a ausência de uma divisão social do trabalho clara entre os diferentes membros da equipa técnica (a figura do preparador físico era, por exemplo, largamente desconhecida e começava então a ser introduzida na selecção) ou ainda as dificuldades em gerir as novas questões jurídicas e financeiras relacionadas com os direitos de imagem dos jogadores. Os acontecimentos de Saltillo, compreendemos desde logo, não nasceram ali. Tinham antecedentes poderosos, alicerçados em relações de poder bastante assimétricas entre dirigentes e jogadores, entre clubes e seleção e entre instituições desportivas e outras forças de mercado.

A segunda parte, “Os Saltillos do México” transporta o leitor para Saltillo onde a selecção estabeleceu a sua base durante o Mundial. Ao longo de cerca de 150 páginas ficamos a conhecer como se desenrolou a vida da selecção nacional portuguesa no México: da marcação das viagens, à escolha do hotel do estágio (um motel sem condições) e das equipas com quem disputar jogos-treino (amadoras) passando pela resolução das questões associadas à alimentação, segurança e privacidade dos jogadores, e das suas relações com os jornalistas que acompanham o estágio. O núcleo central do capítulo trata então de uma revolta dos jogadores e das reacções federativas a essa revolta. No dia 25 de Maio de 1986, a cerca de uma semana do primeiro jogo no Mundial contra a Inglaterra, os jogadores convocaram uma conferência de imprensa na qual tornaram públicas as suas reivindicações: o pagamento das “diárias”, dos “prémios de presença” ou a partilha mais equilibrada das receitas de publicidade. Daqui resultou um drama social que mobilizou o mundo do futebol português, capturou o interesse da imprensa internacional e chegou até às mais altas instâncias políticas do país. As reivindicações económicas dos jogadores transformam-se no quadro desta mobilização numa afirmação da autonomia e dignidade do jogador de futebol. É aqui que a narrativa de Deixem-nos   sonhar  se distingue e, ao mesmo tempo, dá continuidade aos argumentos de Following   the ball.  A questão em 1986 já não era relativa à raça, ao fascismo ou ao colonialismo, até porque não existiam jogadores negros convocados, mas dizia sobretudo respeito a um problema laboral e de classe, de recusa de um estatuto subordinado daquele em torno do qual todo o emergente negócio do futebol (publicidade e transmissões televisivas, por exemplo) se apoiava: o jogador. Como concluí um dos jogadores entrevistados no livro: “Perante os números que se movimentam no Mundial e face àquilo que a FPF recebe, não será difícil concordar que estamos, de facto, a ser explorados” 10 . A selecção portuguesa não era, conforme indicado na obra, a única na qual estas tensões eram manifestas, nem essas tensões resultavam de características individuais dos actores. Resultavam de uma transformação estrutural do futebol internacional e, para Adão e Silva e Tomaz, das dificuldades de uma estrutura autoritária, clientelar e conservadora como a Federação Portuguesa de Futebol, em responder de forma adequada às novas circunstâncias.

Narrada a batalha mexicana entre jogadores e dirigentes, com abundantes notas sobre os perfis políticos, ideológicos e profissionais destes últimos, a terceira e última parte da obra, com o título “Os Saltillos de Lisboa” analisa as consequências, imediatas e duráveis, daquela rebelião e descreve os processos disciplinares abertos aos jogadores, os inquéritos oficiais que se seguiram e a reacção das diferentes instituições políticas e desportivas a esses procedimentos. Esses relatórios, processos, inquéritos, reportagens e reconstituições diversificadas permitem então introduzir novas dimensões na análise (o papel dos representantes dos patrocinadores dos equipamentos desportivos, por exemplo) e mapear de forma mais complexa as relações de força entre diferentes instituições e agentes ligados ao mundo do futebol e como essa estrutura relacional contribuiu para a crise de Saltillo. Mais do que descrever em detalhe os resultados destas análises (que levaram à suspensão de oito jogadores), e das indicações que nos dão também sobre o funcionamento da justiça desportiva, vale a pena referir três questões adicionais relativas à obra.

Em primeiro lugar, tal como sucede com Following the Ball , é o jogador de futebol e o seu ponto de vista que domina a narrativa. Com base em entrevistas realizadas com seis dos jogadores que participaram no Mundial, mas também com elementos da equipa técnica, o cozinheiro da selecção nacional, cinco dos jornalistas que acompanharam o grupo, entre outros, foi possível analisar de forma mais complexa um processo que mobilizou a opinião pública, actores políticos e o campo desportivo em meados dos anos 1980. Ao colocar o jogador no centro da questão, e enquadrar os conflitos observados em Saltillo no âmbito de uma mutação estrutural do campo futebolístico global, o livro consegue mostrar como uma nova economia política do futebol se relaciona com as estruturas de gestão tradicionais da modalidade, nomeadamente com o paternalismo e autoritarismo de um certo tipo de dirigentes desportivos que, sabemos, estão longe de serem figuras tipicamente portuguesas.

Em segundo lugar, é necessário referir que não estamos perante uma obra em ciências sociais no sentido estrito do termo. Ao contrário do livro de Cleveland, um trabalho que obedece aos requisitos teóricos e metodológicos do trabalho em ciências sociais, Deixem-nos sonhar é um trabalho mais próximo do jornalismo de investigação ou de divulgação científica do que um trabalho convencional em ciências sociais. Esse facto é visível, por exemplo, na ausência de uma bibliografia sólida ou de um debate sobre os conceitos e modelos analíticos utilizados ao longo do livro. Não obstante, o trabalho de pesquisa muito sério e a excelente forma de apresentação dos resultados não devem fazer desvalorizar o texto que resulta do trabalho colaborativo de Pedro Adão e Silva, professor e investigador em ciência sociais e política, especializado em políticas públicas e um interveniente de primeiro plano nos debates políticos portugueses, e João Tomaz, cronista e autor de diversos livros sobretudo relacionados com a história do Sport Lisboa e Benfica. Na realidade, a obra contribui decisivamente para iluminar um período particular da história do futebol português e para ampliar as fontes e o campo de problemas passíveis de serem pensados por uma sociologia histórica do futebol, no quadro mais amplo do estudo dos mega-eventos globais. Aquele que constitui um dos grandes apelos do livro para um público mais vasto, a fluidez da escrita e o tom narrativo da obra, representa também, porventura, a sua principal lacuna.

Assim, é necessário referir, em terceiro lugar, que a ausência de uma reflexão teórica sistematizada sobre o objecto em análise e as suas implicações para uma compreensão mais ampla dos processos que influenciaram as transformações no espaço social português ao longo do últimos cinquenta anos, significa que os fenómenos observados no campo desportivo são interpretados à luz de uma filosofia da história e uma teleologia política que surgem constantemente na narrativa de forma mais ou menos naturalizada e tida como evidente. O conflito observado em Saltillo é lido persistentemente como um símbolo de entrada no futuro, neste caso um futuro moderno e europeu, e como um sinal de superação de um atraso ideológico e organizativo, seja ele de matriz socialista ou fascista. A metanarrativa do texto é a de um país dual, “entre tempos cruzados, onde todos os sonhos eram possíveis. O pitoresco e as marcas sociais do passado coexistiam com uma ambição de modernidade, que se revelava frágil, por ter poucos alicerces onde assentar. O ritmo da mudança produzia choques entre passado e futuro no mundo do futebol, à imagem do que acontecia na sociedade, na economia e na política portuguesa” 11 . Um conflito no qual a vitória deste sector racional e modernizador lança definitivamente o país rumo ao progresso. Esse progresso é medido pelos autores num indicador que também nunca sendo claramente enunciado, é construído, presume-se, com base nos resultados desportivos posteriores das selecções nacionais de futebol, começando nos triunfos dos Campeonatos Mundiais de sub-20 em 1989 e 1991, na presença consistente das equipas portuguesas nos grandes eventos desportivos a partir da segunda metade dos anos 1990 e, finalmente, na conquista do Campeonato Europeu de Futebol em 2016.

4.  As contradições de um país na periferia europeia. Bosman, neoliberalismo e o novo mercado de transferências

O livro de Pippo Russo, A Orgia do Poder: a história nunca contada de Jorge Mendes , começa justamente onde a narrativa de Pedro Adão e Silva e João Tomaz termina e permite questionar, a uma outra luz, o significado do processo de modernização do futebol português e ressituar o seu lugar no interior de um campo futebolístico global em rápida mutação. O actor principal deste trabalho já não é o jogador, mas antes a figura do empresário, em simultâneo agente de jogadores e intermediário de transferências. O jogador não surge aqui nem enquanto trabalhador ou símbolo, mas enquanto mercadoria, cuja circulação gera proveitos para diversos agentes e instituições do mundo do futebol, como empresários, clubes e fundos de investimentos. Em sentido estrito, o livro trata da ascensão de Jorge Mendes à condição de “maior empresário do mundo”. O trabalho não procura realizar uma biografia do “superagente”. Tenta, sobretudo, analisar a ascensão de Jorge Mendes no quadro de um conjunto de transformações institucionais e organizacionais do futebol contemporâneo. Num sentido mais amplo, o livro pode ser lido de duas outras formas. Por um lado, permite pensar a emergência da figura do empresário ou agente de jogadores. Actores que, no âmbito da nova economia política do futebol, conquistaram alguma preponderância a partir dos anos 1980, e adquiriram grande destaque a partir do início do século XX, tornando-se num dos pólos de maior poder no interior de uma cada vez maior e mais especializada divisão social do trabalho no interior do campo desportivo. Por outro lado, o livro pode ser analisado também como uma história das reconfigurações transnacionais dos sistemas de governo dos clubes de futebol num mundo pós-Bosman, no qual a emancipação do jogador de futebol relativamente aos clubes desportivos, uma liberdade associada ao fim do direito de retenção dos clubes no final dos contratos, resultou numa situação contraditória e instável.

Pippo Russo é um sociólogo, professor na Universidade de Florença, e jornalista italiano, que se tem dedicado desde meados dos anos 1990 a pensar o campo futebolístico global e a sua relação com outras esferas de poder social. O seu trabalho materializou-se, por exemplo, no excelente Francia ‘98: Il pallone globale : le patrie, I goleador, l’audience, gli sponsor,  no qual é proposta abordagem específica a um mega-evento global. No quadro mais geral do estudo das relações entre futebol e os meios de comunicação, foi, em simultâneo, um interveniente no debate sobre o significado político e ideológico do berlusconismo, sobre o qual publicou, em colaboração com Nicola Porro um texto tão fundamental como “Berlusconi and other matters: The era of ‘football-politics’.” De então para cá o seu trabalho tem-se orientado sobretudo para a análise da nova economia política do futebol e as suas implicações nos modelos de governação do jogo. A Orgia do Poder  representa assim, a continuação do trabalho cartográfico desenvolvido em Gol di rapina. Il lato oscuro del calcio globale 12  .

Em  A Orgia do Poder  é a figura de Jorge Mendes que assume o primeiro plano e é o fio condutor de uma narrativa que nos transporta, segundo o próprio autor, para os meandros da economia paralela do futebol mundial. Nos últimos anos, o trabalho de Russo tem estado mais próximo da denúncia, e do papel do “whistleblower” , muito associado à publicação de livros para o grande público, do que para o trabalho de pesquisa ancorado nos padrões mais convencionais das ciências sociais. A história nunca contada de Jorge Mendes, o agente português que se tornou no patrão do futebol mundial,  segue pela mesma lógica. Assim, é necessário sublinhar desde logo, que o livro se lê em muitas ocasiões como uma teoria da conspiração. No curso das mais de quatrocentas páginas, o leitor ora segue a trajectória de jogadores em circulação entre clubes, ora entra num carrossel de transferências, no âmbito do qual os passes dos jogadores são valorizados e desvalorizados de forma impressionante, retalhados, partilhados e trocados por percentagens dos passes de outros jogadores e se movem por circuitos geográficos absolutamente imprevisíveis. Nessa viagem caleidóspica pela circulação de pessoas e capitais, a circulação de imagens (especulação sobre transferências e a valorização do desempenho e personalidade dos jogadores nas várias imprensas especializadas dos países por onde circulam) entra também como parte integrante de valorização dessa mercadoria a que damos o nome de jogador de futebol.

O livro está organizado de forma cronológica e os seus nove capítulos permitem-nos acompanhar a emergência e a afirmação de Jorge Mendes, primeiro, no mercado de intermediação de transferências português (o capítulo 3 “O mercado português e os antigos tubarões Manuel Barbosa e José Veiga: genealogia do poder mendesiano” é especialmente interessante no que concerne à possibilidade de uma análise histórica da figura do empresário) e, depois, a sua afirmação internacional. O capítulo final, “Os amigos poderosos, a propaganda, a obsessão pela imagem: a história do Candidato da Verdade ”, procura interpretar o significado ideológico e cultural da figura de Jorge Mendes. O tom de denúncia e o carácter justiceiro do livro tornam-no num objecto complexo do ponto de vista dos ideais de neutralidade na pesquisa em ciências sociais. As fontes primárias utilizadas por Pippo Russo para a reconstituição deste estonteante mercado são em grande parte as notícias publicadas na imprensa internacional e, em segundo lugar, os relatórios de contas dos clubes e de instituições oficiais. São raros e quase sempre em anonimato, os testemunhos orais que o autor foi capaz de recolher. Nos seus melhores momentos, Pippo Russo coloca questões, descobre objectos e identifica periodizações até aqui pouco exploradas pelas ciências sociais.

Duas destas questões são fundamentais para analisarmos a reconfiguração neoliberal do campo futebolístico global e as suas consequências do ponto de vista dos vários agentes que se defrontam nesse campo. Em primeiro lugar, e como já foi referido, o problema da autonomização do papel do empresário, a sua evolução histórica e a forma como transformou os papéis mais ou menos bem definidos e delimitados no interior de uma divisão social do trabalho específica no interior do clube e do campo desportivo, ou seja, os lugares ocupados pelo dirigente, treinador, detector de talento, conselheiro jurídico ou gestor de carreira. Em segundo lugar, a trajectória de Jorge Mendes é indissociável do processo de mercadorização do jogador, de financeirização do futebol e da reconfiguração organizativa e institucional que acompanha estes processos. Pippo Russo mostra-nos, de forma clara, como desde 1999, os clubes desportivos portugueses funcionaram como campo laboratorial para a implementação destas inovações financeiras. O autor identifica três grandes fases neste processo. Em 2002 é em Portugal que se cria o primeiro fundo de investimento especializado em direitos económicos de jogadores. Em 2009, são criados em Portugal os primeiros fundos de clubes que permitem captar financiamento externo no contexto da proibição de Third Party Ownership. E, finalmente, desde 2014 observa-se a aquisição de clubes por parte de entidades privadas, de forma a contornar as limitações à propriedade de direitos de jogadores e aos investidores externos. O impacto destas mutações institucionais na gestão dos clubes desportivos, na sua sustentabilidade financeira, na competitividade das competições e, por consequência, nos laços que os adeptos estabelecem com os seus clubes e equipas encontram-se ainda longe de ser plenamente compreendidas.

5.  Questões de teoria e método: notas breves

A leitura conjunta destas três obras, produzidas por autores com inserções muito diferentes no campo académico e dirigidas a públicos também eles distintos, permite enunciar alguns pontos que podem contribuir para ampliar os materiais a partir dos quais a historiografia do desporto trabalha, as periodizações e escalas geográficas destas investigações e a relevância dos problemas que coloca para campos disciplinares mais alargados. De forma absolutamente sintética, estas obras colocam três questões essenciais: 1) a necessidade de olhar para as periferias para entender o centro, ou melhor, para entender o sistema futebolístico transnacional e as hierarquias que se formam no seu interior; 2) a importância de cruzar periodizações convencionais (as da história política, por exemplo) e escalas geográficas (do estado-nação). A história do jogador de futebol na modernidade futebolística portuguesa, entre 1949 e 2015, permite justamente situar a constituição de um campo desportivo nacional no quadro de processos multidimensionais e de âmbito global, irredutíveis a propostas explicativas monocausais; 3) do ponto de vista dos materiais primários, é necessário sublinhar a importância da história oral para a reconstrução destes processos, permitindo recuperar vozes tendencialmente silenciadas que nos podem ajudar a interpretar estes processos a uma outra luz. O silêncio dos jogadores e treinadores nossos contemporâneos sobre as suas circunstâncias laborais não deixa de apresentar continuidades com anteriores estados do campo que uma narrativa do progresso não é capaz de abarcar.


1  A. Tonlinson, C. Young, Towards a New History of European Sport , in «European Review» , XIX, n. 4 (2011), pp. 487-507.

2  D. Chernilo, A social theory of the nation-state. The political forms of modernity beyond methodological nationalism, Nova Iorque,   Routledge, 2007.

3  A. Appadurai, Dimensões culturais da globalização , Lisboa, Terramar, 2004.

4  R. Giulianotti, R. Robertson, Mapping the global football field: a sociological model of transnational forces within the world game , in «The British Journal of Sociology», LXIII, n. 2 (2012), pp. 216-240.

5  T. Cleveland. Following the Ball: The Migration of African Soccer Players across the Portuguese Colonial Empire, 1949–1975 , Athens, Ohio University Press, 2017; P. Adão e Silva, J. Tomaz, Deixemo-nos Sonhar. Caso Saltillo: Portugal e o México 86,  Lisboa,   Tinta-da-China, 2017; P. Russo, A Orgia do Poder: a histórica nunca contada de Jorge Mendes , Lisboa, Planeta, 2017.

6  F. Cooper, What if the concept of globalization good for? An African historian’s perpective , in «African Affairs», C, n.339 (2001), pp. 189-213.

7  T. Cleveland, Stones of Contention: A History of Africa’s Diamonds, Athens, Ohio University Press, 2014; T. Cleveland, Diamonds in the Rough: Corporate Paternalism and African Professionalism on the Mines of Colonial Angola, 1917-1975, Athens, Ohio University Press, 2015.

8  M. Cardão, A Star is Born: Eusébio, Football, and Ideology in the Late Portuguese Empire , in «The International Journal of the History of Sport», vol. 35, n. 4 (2018), pp. 374-388; N. Domingos, The death of a football player. Eusébio and the struggle for portuguese history , in «Práticas da História», n.8 (2019), pp. 163-197.

9  P. Adão e Silva, J. Tomaz, Deixemo-nos Sonhar, cit., p.14.

10   Ivi , p.261.

11   Ivi , p.12.

12   Francia’98: il pallone globale: le patrie, i goleador, l’audience, gli sponsor, Roma RAI-ERI, 2000; N. Porro, P. Russo, Berlusconi and other matters: The era of ‘football-politics’, in «Journal of Modern Italian Studies», V, n. 3 (2000), pp. 348-371; P. Russo, Gol di rapina. Il lato oscuro del calcio globale: oligarchici, agenti monopolisti, fondi d’investimento. Come l’economia parallela sta divorando l’ex gioco piuÌ€ bello del mondo,  Firenze, Edizioni Clichy, 2014.